quarta-feira, 26 de maio de 2010

A segunda humanidade

Estudo genético revela que espécie humana quase se dividiu em duas há cerca de 150 mil anos

CLAUDIO ANGELO
Os bosquímanos da África do Sul sempre foram considerados povos singulares: são fisicamente distintos, preservam uma cultura de caçadores-coletores que remete aos hábitos da humanidade na Idade da Pedra e têm línguas que não se parecem com nenhuma outra (uma de suas consoantes, por exemplo, é um estalo feito com a boca). Agora, um grupo de geneticistas encontrou uma razão para tamanhas diferenças: os ancestrais dos bosquímanos estiveram a ponto de originar uma outra espécie humana.
Durante um tempo que variou de 50 a 100 milênios, os khoisan (nome comum dado a todos esses povos) estiveram evoluindo isoladamente do restante das populações de Homo sapiens, uma espécie relativamente nova e com talento para colonizar novas terras -mas que, no entanto, ainda não havia deixado a África.
Esse isolamento só se rompeu há 40 mil anos. Não fosse essa troca recente de genes, os khoisan possivelmente estariam a caminho da especiação, evento que acontece quando duas populações de organismos evoluem separadamente a ponto de não poderem mais se cruzar entre si.
“Especiação não é um termo adequado”, corrige o geneticista Fabrício Santos, da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). “Deve-se falar em diferenciação. Demonstrou-se que realmente eles ficaram separados por um tempo significativo, mas não foi tempo suficiente para haver também isolamento reprodutivo, que é a marca final da especiação. Cinqüenta mil anos são 2.000 gerações, o que é um tempo relativamente curto para a evolução de novas espécies com isolamento reprodutivo.”
Marcas
Seja como for, essa longa separação entre os khoisan e o restante da humanidade deixou marcas profundas nos genes dos bosquímanos. A dimensão dessas marcas foi revelada na semana passada por Santos e colegas de várias instituições de pesquisa ao redor do mundo. Esse grupo de cientistas compõe o Projeto Genográfico, um esforço para mapear a história das populações humanas e de suas migrações ao redor do planeta olhando o DNA.
Em um artigo publicado on-line na revista científica “American Journal of Human Genetics”, o geneticista americano Spencer Wells e colegas de oito países olharam um tipo específico de DNA, contido nas mitocôndrias (as usinas de energia das células). O chamado DNA mitocondrial é um excelente contador de histórias de migração, porque escapa do embaralhamento genético ocorrido entre os cromossomos no núcleo celular durante a fecundação. Além disso, ele só é transmitido de mãe para os filhos e sofre mutações (trocas espontâneas em alguma das letras químicas A, T, C e G que compõem a molécula de DNA) a uma taxa conhecida.
Estudando o DNA mitocondrial (mtDNA, na sigla) de duas pessoas quaisquer, é possível saber em que ponto do passado elas compartilharam um ancestral materno comum.
Wells e seu grupo, no entanto, não estão atrás de um ancestral de duas pessoas, mas sim dos ancestrais maternos de toda a humanidade. Para isso, eles seqüenciaram o DNA mitocondrial completo de 624 pessoas, comparando as mutações que elas têm em comum (haplogrupos) e datando as separações entre cada população de acordo com o relógio molecular oferecido pelo mtDNA (no qual uma mutação ocorre a cada 5.138 anos, em média). Isso permitiu montar a árvore genealógica materna humana.
Dois troncos
O que os cientistas verificaram foi que essa árvore não tem um único tronco e sim dois, ambos enraizados na África -que os cientistas chamam de ramo L0 e ramo L1′5.
Ao tronco L0 pertencem os khoisan. Ao L1′5 pertence basicamente todo o resto da humanidade. As linhagens que deixaram o continente africano a partir de 60 mil anos atrás e geraram desde os índios americanos até os aborígenes da Austrália, passando pelos europeus e os asiáticos, são apenas duas; as outras são todas africanas.
“Simplificando, um bantu (típico africano) é mais relacionado conosco [de ancestrais europeus ou indígenas] do que com os khoisan”, diz Santos.
Para o cientista, o achado foi uma surpresa: “Pouca atenção havia sido dada à diversidade genética na África. Sabia-se que ela era maior, mas o estudo detalhado mostrou que, na maior parte do tempo, nossa espécie esteve lá pela África, diferenciando-se internamente”, antes das migrações para fora.
A análise também indica a formação de pequenas comunidades independentes em vez de um espalhamento uniforme dos humanos modernos. O tamanho pequeno das populações provavelmente facilitou o isolamento dos ancestrais dos khoisan no sul do continente, devido talvez a uma mudança no clima. A barreira só seria rompida milênios mais tarde, quando a tecnologia “moderna” do fim da Idade da Pedra permitiu recolonizar o sul.
“Folha de S. Paulo ciência”
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